sexta-feira, 7 de maio de 2010

O amor com a dor se apaga

(imagem possível, via iPhone, que o ambiente não dava para mais...)

À medida que Rufus Wainwright ia entrando no palco do Coliseu do Porto, com um vestido azul de longa cauda, penas brancas no pescoço e tez branca de actor Kabuki - uma cena a lembrar Gloria Swanson em Sunset Boulevard – pressentia-se que a noite ia ser diferente e muito pouco convencional. Nada que não esperasse: em quatro concertos a que assisti do canadiano, nunca um se repetiu ou deixou de ter surpresas. O público foi devidamente avisado para não aplaudir entre canções (os pobres que chegaram tarde-mais uma vez começou à hora marcada- e desconheciam o aviso, recebiam rabecada grande quando iam “à palminha”). E durante cerca de uma hora, o cantautor levou-nos a viajar por uma série de mares muito pessoais, que percorreram portos íntimos como o da morte recente (Janeiro último) da sua mãe, Kate McGarrigle; as dores dessa e de outras perdas; a sua relação com a irmã Martha e a sua também recente reconciliação com o seu pai, o consagrado Loudon Wainwright III. Durante cerca de uma hora viveu-se um ambiente missal, com os silêncios entre músicas a reforçarem ainda mais os sons melancólicos de All Days Are Nights: Songs for Lulu, o seu mais recente trabalho. Em fundo, a todo o pano, um olho muito/pouco humano(!), que se multiplicava por vezes, ora mostrava a pálpebra ora se abria até, lentamente, deixar sair uma lágrima. Contemplava a audiência. Ia-se fechando e abrindo. Substituía o olhar de quem estava em palco: nem por uma única vez Rufus olhou aqueles que estavam à sua frente. No final, levantou-se, contornou a cauda do seu vestido e, muito lentamente, afastou-se. Da mesma forma que entrou. Em silêncio. Até desaparecer.

Foi quase com um ar de alívio que se viu Rufus reaparecer, depois de um intervalo de vinte e cinco minutos, sem aquele negrume. O fundo do palco era iluminado agora por cores vivas e Rufus vestia um fato claro. Durante cerca de mais uma hora percorreu os seus temas mais marcantes e conversou com a plateia. Aqui couberam palmas, risos e cumplicidades. Enganou-se três vezes (Art Teacher; Little Sister e Cigarettes and Chocolate Milk) e das três vezes alegou que tinha a cabeça no que tinha visto e comido nesse dia, quando andou a passear pelo Porto. Terminou com um encore e com agradecimentos sentidos ao seu público, pela forma como, com carinho e dedicação, o ajudaram a ultrapassar o que viveu nestes últimos meses. Foi um final perfeito de uma noite com um autor que, preferindo cantar o amor, se viu obrigado a cantar a dor que lhe veste a alma.

1 comentário:

Carlos Lopes disse...

Grande texto, e um grande concerto, seguramente!