Tive o privilégio de assistir, no Porto (Teatro do Campo Alegre), ontem à noite, à centésima edição das "Quintas de leitura". Os valiosos préstimos do amigo João Reis Lima e do banco que representa, o Montepio Geral, instituição mais do que centenária, possibilitaram-me ter uma noite/sarau quase renascentista. Inesquecível. O mote foi a poesia. João Gesta o programador e grande responsável pelo evento que já conta com oito anos, crê que "é impossível viver sem Poesia. Ou, como diria o Poeta, Sonhar é preciso”. Pelas vozes das apresentadoras de serviço, Adriana Faria e Teresa Coutinho ("uma é morena, a outra sabe-se lá"), desfilaram perante cerca de trezentas pessoas, os bailarinos da Vortice Dance Company (magnífica coreografia coadjuvada por simples mas eficazes adereços: o efeito de gigantes ventoinhas e esferas de esferovite é avassalador); as melodias de Chopin pelas mãos do adolescente pianista Raúl Peixoto da Costa; as vozes de sete amadores de poesia, resultado de um casting que envolveu mais de duzentos participantes e que sentiram e fizeram sentir as palavras de poetas portugueses e não-portugueses; as sílabas do "fraseador" Pedro Lamares que me espantou com a convicção e alma com que vive os poemas que cantou (!); e as músicas do fenómeno B Fachada, razão primeira para a minha presença naquele local.
Foram quase quatro horas de espectáculo. Faltavam cinco minutos para as duas da madrugada quando B Fachada começou a sua actuação. Talvez por isso, o público não era propriamente o mais amigável. Metade da plateia tinha já abandonado a sala (isso mesmo foi registado pelo artista, sempre muito dialogante) e os que ficaram não eram muito conhecedores do seu trabalho. Nunca tinha visto B Fachada a actuar. Pareceu-me que não se leva a sério. O pior é que a atitude é contagiante e, de repente, parecia estar perante um cómico e não um músico. Fiquei sem perceber se é sempre assim ou se foram as circunstâncias. Ajudado pelo contrabaixo do seu amigo Martim Torres, fiquei com a sensação, apesar de ter gostado do que ouvi, que poderia ter feito mais. B Fachada vale muito mais do que mostrou. Sempre inteligente e com um sentido de humor refinado ("esta foi uma música cheia de intertextualidade... modesta contribuição depois de tantas mostras de cultura que pudemos assistir hoje à noite") acompanhado pela sua guitarra presa por um fio, rejeitou as palminhas (abençoado seja!) porque não o deixavam tocar. Era importante que o público não se esquecesse que estava perante "um mau músico", disse ele. Tocou quase tudo do seu trabalho mais recente e ainda coisas mais antigas. Mostrou-se mas mostrou-se pouco. Quem não conhecia ficou sem saber o seu real valor. Quem já conhecia, ficou com este amargo de boca. Outro concerto clarificará as coisas. Eram quase três da manhã quando as apresentadoras loira e morena, selaram o final do espectáculo com um inesperado mas propositado beijo de lábios. Foi a nota levemente surreal numa noite especial que espero ver repetida nas próximas edições.
1 comentário:
Grande texto, Jorge! Gostava de ter assistido. Sempre te disse que o Fachada parece não se levar a sério. E ainda bem.
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