Estende-se a madrugada pelo aeroporto de Santa Maria, nos Açores. Ivo, 24 anos, poeta por paixão, controlador aéreo de profissão, prepara-se para mais um turno ocupado com o radiotelefone. Como sempre, a sua missão será estabelecer comunicação entre terra e as diferentes aeronaves que a sua posição comporta. Naquela noite tudo será diferente. O supervisor atribui-lhe uma frequência com apenas uma aeronave a seu cuidado. O normal seria ocupar-se de entre dez e quinze aviões. À mesma hora, a muitos quilómetros de distância, algures sobre o Atlântico Norte, ao comando de um pequeno avião dos anos 50, está F., maiúscula arbitrária para um nome que nunca conheceremos. Tem mais de sessenta anos. É um piloto experiente. Vindo de La Valleta, em Malta, fizera escala em Santa Maria. Dirige-se para a Califórnia, onde esperam a aeronave para a utilizar na pulverização de pomares. Porém, já toda a gente sabe, F. incluído, a impossibilidade de chegar com o avião ao destino. Dispõe de combustível para apenas uma hora de voo - e o aeroporto mais próximo, St. Johns, no Canadá, está a cinco horas de distância. O piloto poderá tentar uma amaragem, mas o temporal e a fragilidade do aparelho não dão margem para cenários optimistas. Vai cair no mar. Se bem, se mal, o tempo o dirá.
Ivo senta-se e fica uns minutos em silêncio. Olha para o microfone e, como um carrossel em movimento contínuo, há uma pergunta a inundar o espaço circundante. Tenta desviar-se, mas a interrogação vai e volta. Vai e volta. E Ivo sem conseguir saber o que fazer naquele exacto momento e naquelas exactas circunstâncias. Nenhum manual de procedimentos o salva.
Na aeronave, não fora o ruído dos motores, o silêncio seria tão pesado como a escuridão daquele manto único feito de mar e céu. F. não está com disposição para conversar. Conhece bem as limitações do aparelho. Sabia que era necessário fazer várias escalas técnicas para reabastecimento. Talvez Ihe ecoem ainda as palavras ouvidas em Santa Maria. Os serviços de meteorologia tinham-lhe proposto um adiamento do voo. Previam-se ventos fortes no Atlântico Norte. F., ancorado nas suas muitas horas de voo, acreditou ser possível fazer a viagem. Partiu.
Já em pleno voo, confirmam-se as piores previsões da meteorologia. A tempestade obriga-o a voar em ziguezague. Consome muito combustível e atinge o ponto crítico mais cedo do que tarde. Percebe ter perdido margem para regressar e não ter já hipótese de alcançar qualquer aeródromo caso siga em frente.
Sem se verem, Ivo e F. estão frente a frente. Separa-os a iminência da tragédia e a impotência para a evitar. Divide-os a vontade de silêncio de um, e o desejo de diálogo do outro. Ivo tenta quebrar o gelo com uma pergunta técnica. Quer confirmar o tipo de aeronave pilotada por F. A resposta é monossilábica. Se não podem ficar uma hora em silêncio, também Ivo não pode arrancar palavras a F.
Apesar de informado da solidão do piloto, Ivo faz mais uma tentativa de aproximação. Pergunta-lhe se está só. A resposta surpreende-o. O piloto diz que estão duas pessoas a bordo. Ivo confronta-o com a informação oficial e F. provoca a primeira surpresa. Diz que tem na cabine a companhia dos seus livros. Por isso não esta só. Pelo contrário.
Ivo respira fundo. Percebe uma luz saída daquele frase. A presença de um livro, mudo, inerte, pode ser a chave para a abertura do caminho capaz de o aproximar daquele homem afinal não tão solitário como imaginava. F. faz-se acompanhar dos poemas da norte-americana Adrienne Rich (1929). Ivo não a conhece. O piloto resolve ler-lhe três poemas da também ensaísta e feminista nascida em Baltimore.
Está aberta a porta para a conversa. O jovem controlador aéreo descobre uma nova poetisa e sente necessidade de agradecer.
Pergunta ao piloto se conhece poesia portuguesa. A resposta é a esperada. Não, não conhece, mas, apesar das circunstâncias, mantém desperta a curiosidade e pergunta a Ivo se seria capaz de Ihe falar dos poemas escritos na sua língua. Às vezes há pedidos mais tormentosos que a pior das tempestades. Ivo quer agarrar aquela oportunidade, mesmo se não tem ao lado uma biblioteca, muito menos recheada de poemas Portugueses vertidos para inglês. A necessidade aguça o engenho, já dito está. Ivo escava no mais fundo da memória e começa a dizer poemas soltos de Sophia, «O Sentimento de um Ocidental», de Cesário Verde, a«Liberdade» e «0 Menino de sua Mae», de Pessoa. O esforço é inominável. Pelo modo como arranca aqueles versos às entranhas da mente, e pela necessidade de em simultâneo os traduzir.
A passagem do tempo arrasta consigo o esgotamento do possível reportório. Tem de mudar de latitude. Passa a recitar versos soltos de Emily Dickson, Colleridge. Do outro lado, um piloto, um avião sem combustível e o mar à espera do desenlace inevitável. Pelo meio, a uni-los, poemas. Só poemas do Mundo.
Como nenhuma memória é um poço sem fundo, algures pela madrugada Ivo percebe chegar a sombra do silêncio. Está a ficar sem poemas para dizer. Nesse momento opta pelo último dos recursos. Passa a largar pelas ondas radiofónicas a sua própria poesia. Em 1981 publicara já o seu primeiro livro, Alguns Anos de Pastor, do qual, anos mais tarde, Fernando Lopes Graça haveria de musicar cinco poemas para canto lírico. O piloto apercebe-se da mudança de tom e de registo. Pergunta-lhe se escreve poesia. Tímido, Ivo não ousa dizer que sim. Evita reclamar como seus os poemas que ele próprio escrevera e acabara de recitar.
Salva-o um providencial livro com a obra de Walt Whitman deixado esquecido no bar do aeroporto e que há alguns dias Ivo guardara no seu cacifo. Vai buscá-lo e começa a leitura de «Leaves of Grass», a obra emblemática do poeta norte-americano.
Já não há distâncias. Já não há o mar pelo meio. Já não há a iminência da tragédia. Leitor e ouvinte estão fundidos num só. Conversam como dois amigos identificados pelos mesmos códigos de linguagem.
Sentado numa esplanada da praia da Agudela, em Matosinhos, com o mar em fundo, Ivo recorda agora ter percebido, então, que se estabelecera entre os dois «uma conversa como a que tem duas pessoas que se conhecem desde sempre». «Ele estava muito sereno. As palavras saiam claras. Tinha uma voz como se viesse da alma. Uma voz que ainda hoje dou comigo a escutar e a ecoar nos meus ouvidos», conta.
Nem por um momento a situação concreta do voo é tema de conversa. Falam de poesia. Oferecem-se poesia. Ouvem poesia.
Há fugazes instantes da vida capazes de encerrar em si uma eternidade. Aquela hora ficou cristalizada no tempo e continua a não ser mensurável no imaginário de Ivo. Coube ao piloto estilhaçar a artificial magia que aos dois cegava. Não obstante o poder da poesia, teve de interromper Ivo para Ihe dizer que o fim se aproximava. Nos depósitos já quase não havia combustível. Precisava de um último favor. Queria saber se havia tubarões e qual a temperatura da água do mar naquela latitude.
Ivo estava em simultâneo em contacto com torres de controlo no Canadá e nos EUA, que, de resto, tinham estado a seguir e a ouvir tudo quanto fora dito naquela hora. Por uma vez, as comunicações aéreas nada tiveram a ver com coordenadas, latitudes ou longitudes, mas sim com a palavra feita poema.
O perigo dos tubarões estava afastado, dada a baixa temperatura das águas. Ivo informou o piloto que ia «fazer contagens para estabelecer um triângulo entre Santa Maria, Gander no Canadá, e Nova Iorque, de modo a estabelecer a localização do avião».
Os meios de salvamento tinham sido accionados. Um navio canadiano navegava já em direcção ao previsível ponto de queda. Em simultâneo, a aeronave estava a ser sobrevoada por um avião canadiano. O drama, o receio de todos, residia na fragilidade do pequeno aparelho pilotado pelo aviador amante de poemas. Ninguém estava seguro de que fosse capaz de fazer a amaragem. Ninguém sabia dizer se a aeronave aguentaria o impacto com as águas do mar sem se desintegrar.
No intervalo das dúvidas impõe-se o silêncio. Ivo deixa de ouvir o piloto. Pede a Gander e Nova Iorque para o chamarem. A partir do avião que o sobrevoa chega a informação de que está feita a amaragem. A aeronave está intacta. Tudo parece estar bem.
Para Ivo aquilo significava que o homem estava vivo. «Senti uma enorme alegria. Senti que tinha cumprido o meu papel, sobretudo por Ihe ter proporcionado aqueles instantes de serenidade», diz.
Seriam umas cinco horas da madrugada, decorriam ainda as operações de salvamento, quando o supervisor aconselha Ivo a ir descansar. Já nada mais podia fazer e aquela fora uma esgotante jornada de trabalho. Todo o descanso seria necessário.
Após umas horas de sono, o jovem poeta regressa ao aeroporto para saber mais notícias do piloto norte-americano cujo nome ainda hoje ignora.
Não há nenhuma forma boa de dar uma má notícia, comprovou-o Ivo no exacto momento em que, à simples e ansiosa pergunta sobre o estado de saúde daquele amigo cujo rosto nunca viu, Ihe respondeu de forma seca: morreu.
Uma só palavra esmaga todas as palavras do universo. Ivo não sabe se está surdo de tanto barulho provocado pelo estrondo daquela notícia, se por se terem os seus ouvidos refugiado na concha protectora de um silêncio sem fim. Por uns segundos, o mundo não existe e nada é compreensível. Passara tempo, muito tempo, até Ivo conseguir absorver a racional explicação. «Devido às características do aparelho, quando se deu o impacto com o mar, um dos painéis do 'cockpit' soltou-se, bateu na cabeça do piloto e matou-o».
Quando a Marinha canadiana consegue aproximar-se da aeronave, encontra o piloto sentado aos comandos, mas morto. Com o mar a espelhar-se-lhe no olhar, Ivo lembra-se de como foi terrível aquela situação. «Aquela morte era uma desgraça e todo o meu esforço tinha sido em vão», afirma.
Agora sabe que se precipitou no juízo feito. «Mais tarde provaram-me que se ele tinha amarado' em condições perfeitas, se o avião não se tinha desintegrado, isso só fora possível pelo facto de o piloto estar sereno e seguro. Afinal, tinha sido a poesia a contribuir para que a amaragem tivesse sido feita com toda a tranquilidade». Mais tarde, uma publicação norte-americana de aeronáutica comentou este episódio para assegurar que fora pelo poder da poesia que o piloto conseguira amarar da forma segura como o fez.
No exacto dia da morte de F., Ivo jurou a si mesmo que iria continuar a escrever poesia. Pouco depois pediu para ser transferido para o aeroporto do Porto e gostaria de fugir desta história. Interroga-se muitas vezes sobre se foi mentira ou verdade tudo aquilo que sabe ter vivido. Admite que, agora, com 50 anos, seria impensável abordar da mesma maneira uma situação daquele tipo.
Dois homens. O destino obrigou-os a viver em conjunto situações extremas. Ivo nunca perguntou ao piloto como se chamava. O piloto nunca soube que se chamava Ivo o homem que Ihe lia poemas enquanto voava para a morte. No que ao domínio pessoal diz respeito, limitaram-se a trocar informações sobre as respectivas idades. 0 piloto tinha um filho da idade de Ivo.
Algures a meio da conversa, o piloto prometeu a Ivo enviar-lhe um livro de Adrienne Rich mal chegasse a Califórnia. A promessa não pôde ser cumprida. Porém, na primeira vez que foi aos Estados Unidos da América, o jovem poeta português procurou sem êxito os esgotados livros de Adrienne. Mais tarde, a Internet resolveu-lhe a lacuna. Agora já conhece bem a poesia desta mulher de causas e tem um sonho. Já esteve muito próximo de a conhecer pessoalmente e não desistiu ainda da ideia. Está convencido de que «a grande homenagem que poderia fazer a memoria daquele homem seria um dia conseguir contar esta história a Adrienne Rich».
O pesadelo do sucedido naquela madrugada acompanhou-o durante anos. Precisou de apoio. Apoderou-se de Ivo «uma nostalgia e uma dor tremenda».
Agora, em final de conversa e após mais de duas horas com o mar como testemunha, Ivo desabafa: «Acho que não voltarei a falar sobre isto. Quando recordo o sucedido dou comigo numa espécie de labirinto do qual não consigo sair». E Ivo quer sair daquela dor que o revisita. Quer libertar-se da voz que o acompanha.
Quer deixar morrer a história de morte que Ihe marca a vida."
2 comentários:
Tão bonito!
Os poemas, sempre os poemas a tornar tudo mais sereno, até a morte. Tenho eternamente a voz do meu pai a dizer-me poemas..."...no plaino abandonado que a morna brisa aquece, de balas..." (O menino de sua mãe)
Não são só os adultos que gostam de uma bonita história antes de dormir... :)
Boa noite!
Corrijo o comentário anterior: eu queria dizer que "não são só as CRIANÇAS que gostam de uma bonita história antes de dormir..."
Sorry, isto é de dormir muito pouco com toda a certeza.
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