quinta-feira, 23 de abril de 2015

Coração máquina


Foi um privilégio assistir, numa era em que os sons minimais, ainda que eletrónicos, soam pouco trendy, ao concerto dos históricos Kraftwerk. O privilégio resulta da consciência da génese: os sons seminais da música eletrónica (e não só) estavam ali e muita da música que ouço hoje provém da influência clara destes senhores que se apresentaram em palco como sempre me habituei a ver em imagens de revistas da especialidade ou notícias aqui e ali, do 7ete ao Blitz.

O espetáculo estava anunciado como tendo uma forte componente tridimensional daí que a distribuição de óculos à entrada não espantasse quem se preparava para procurar o seu lugar na sala. Os óculos reproduzem o posicionamento do grupo em caracteres de 8 bits. A estética de 8 bits num mundo de 64 bits é algo que começou por definir o que aconteceu na passada segunda feira na principal sala da Casa da Música. A componente visual será a única forma de tornar apetecível um concerto em que os elementos tocam sintetizadores e teclados mas das diferentes formas de abordar a questão, os produtores do concerto conceberam a ideal. As imagens tridimensionais sucediam-se e espantavam na forma como casavam na perfeição com o registo sonoro que era produzido. O que ouvia era profundamente familiar na medida em que os acompanho desde o início dos anos oitenta. Ainda assim, foi interessante ver (ouver?) como a versão analógica do que conhecia, incrustada na minha mente, foi sobreposta por uma mais clara e definida, mais digital, logo mais robotizada e concordante com o espírito dos Kraftwerk. O grupo de Dusseldorf tem este efeito revelador. Muito do que apresentavam como sendo algo futurístico veio a confirmar-se como realidade presente. Radioactivity (1975) tornou-se uma homenagem a Chernobyl (1986) e a Fukushima (2011); Computer World (1981) funciona como espécie de premonição das atuais redes socias (é uma expressão detestável mas à falta de melhor…) e Autobahn (1974) antecipava o poder e efeito das vias inauguradas pelos alemães na nova sociedade civil. No palco, Ralf Hütter (único elemento do alinhamento original do projeto), Fritz Hilpert, Henning Schmitz, e Falk Grieffenhagen posicionavam-se atrás de pódios futuristas, vestidos com justos fatos pretos pontilhados por traços de luz que ganhavam cor com as alterações dos cenários visuais. Hütter funcionava como líder e acrescentava voz e sons vocais aos temas que emulavam, também eles, a fusão (morphing) entre o homem e a máquina. Mais ou menos a meio do espetáculo, o movimento de cortinas trouxe quatro elementos Kraftwerk robots, evocando The Robots do álbum Man and Machine. Os primeiros segundos ainda trouxeram a dúvida de alguma coreografia mas depois foi a constatação de que se tratavam de meros elementos cénicos e mecânicos. E durante largos minutos os quatro robots, de movimentos básicos, 8 bits, estiveram a gastar as baterias para a plateia que assistia deliciada à sua performance! Memorável. No regresso, o grupo continuou a sua digressão sonora que contemplou os oito trabalhos editados, hipnotizando-nos com as imagens que, sem falhar, ilustravam na perfeição o que se ouvia. Era uma banda visual, em 3D, de uma nostálgica banda sonora. O que fica é a memória de um concerto verdadeiramente único onde a única falha residiu, mais uma vez, na natureza da sala vs natureza do grupo. Os ecos que tive do espetáculo de Lisboa, no Coliseu, apontam para maior interatividade entre o público e o palco. Estar sentado num concerto desta natureza é motivo de lamento mas com lamúrias  destas vivo eu bem.
 



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