segunda-feira, 23 de setembro de 2013

"Estou vivo e escrevo sol"

© Gisela M. Gracias Ramos Rosa
A inevitabilidade da morte fez-se sentir neste entrar de Outono, com o desaparecimento físico de António Ramos Rosa, um dos maiores poetas da nossa língua portuguesa. Chorei de alegria com as suas palavras; e chorei de amor embalado por elas. Muitas vezes. E muitas vezes foi e continuará a ser fonte de introspecção e reflexão. Como toda a poesia deve ser.
Este foi o último poema rabiscado de novo, hoje, pelo poeta, após a sua filha lho ter sussurrado ao ouvido. "Estou vivo e escrevo sol". O poeta está vivo e estará sempre. Deixa-nos a sua obra, e esta, há muito, da lei da morte se libertou. Vida longa!

Estou vivo e escrevo sol

Eu escrevo versos ao meio-dia
e a morte ao sol é uma cabeleira
que passa em frios frescos sobre a minha cara de vivo
Estou vivo e escrevo sol

Se as minhas lágrimas e os meus dentes cantam
no vazio fresco
é porque aboli todas as mentiras
e não sou mais que este momento puro
a coincidência perfeita
no acto de escrever sol

A vertigem única da verdade em riste
a nulidade de todas as próximas paragens
navego para o cimo
tombo na claridade simples
e os objectos atiram as suas faces
e na minha língua o sol trepida

melhor que beber vinho é mais claro
ser no olhar o próprio olhar
a maravilha é este espaço aberto
a rua
um grito
a grande toalha do silêncio verde

António Ramos Rosa

1 comentário:

Mili disse...


"Para um amigo tenho sempre um relógio esquecido em qualquer fundo de algibeira. Mas esse relógio não marca o tempo inútil. São restos de tabaco e de ternura rápida. É um arco-íris de sombra, quente e trémulo. É um copo de vinho com o meu sangue e o sol."
António Ramos Rosa
Uma companhia para sempre